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sábado, 17 de dezembro de 2016

Renan Calheiros, o imperador do Senado



A tensão dos dias em que os Três Poderes da República se uniram em um acórdão construído para salvar a pele do presidente do Senado, enrolado na Justiça

Por Ana Clara Costa e Bruno Boghossian, 09/12/2016,
 www.época.com.br

O presidente Michel Temer acabara de se reunir com seus principais ministros e líderes do Congresso para discutir a espinhosa e essencial reforma da Previdência e conversava com alguns de seus auxiliares – entre eles os ministros Henrique Meirelles (Fazenda), Eliseu Padilha (Casa Civil) e Alexandre de Moraes (Justiça). Era o início da noite de segunda-feira, dia 5, e todos haviam deixado seus celulares do lado de fora da sala, como passou a ser rotina no Palácio do Planalto com a proliferação de gravações e vazamentos de diálogos reservados entre os poderosos. Portanto, nada sabiam do que se passava no mundo fora dali. A poucos metros, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM do Rio de Janeiro, espantou-se ao saber, durante uma entrevista coletiva sobre o novo plano de aposentadorias, que o presidente do Senado, Renan Calheiros, acabara de ser afastado do cargo. Maia voltou a passos rápidos até a sala de reuniões para relatar o que ouvira. Entre os presentes, a sensação naquele momento era de que o “chão se abriu”.

Uma linha direta incomum entre os Três Poderes da República se abriu minutos depois que o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, tornou pública sua decisão de afastar Renan. Teve início ali mesmo uma operação que envolveu o presidente da República, ministros de Estado, juízes do Supremo Tribunal Federal, parlamentares de vários partidos e até ex-presidentes para tentar frear uma crise institucional.

O presidente interrompeu a conversa com seus auxiliares imediatamente e foi para seu gabinete, no andar de cima. Telefonou para Renan, que, irritado, repetia que a decisão de Marco Aurélio era “completamente absurda”. Temer respondeu que afastar o presidente de um Poder de maneira monocrática – ou seja, individualmente, antes de uma votação em plenário – era algo, no mínimo, extravagante. Chamado ao gabinete presidencial, o ministro da Justiça recebeu a missão de procurar os integrantes do Supremo ainda naquela noite. A mesma tarefa foi delegada a ministra-chefe da Advocacia-Geral da União, Grace Mendonça. Temer ligou pessoalmente para a presidente da Corte, Cármen Lúcia, e expôs o receio de que o agravamento da crise institucional entre Judiciário e Legislativo pudesse travar o país. Em aliança, Renan e Temer começavam, desde aquele momento, uma campanha para que a Corte não só revertesse a decisão de Marco Aurélio, em uma saída negociada, mas que o fizesse da maneira mais rápida possível. 

Enquanto o Palácio do Planalto colocava seu plano em ação, um segundo centro de negociação funcionava na residência oficial da presidência do Senado, no Lago Sul, em Brasília. Surgiam ali os sinais de que a decisão de Marco Aurélio Mello poderia ser superada com conversas políticas, não jurídicas. Nos contatos iniciais, interlocutores de Renan e do Planalto relatavam ao presidente do Senado que as primeiras dissonâncias surgiam nas vozes dos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Na tarefa de sentir a temperatura do plenário do Supremo, Renan recebeu o reforço do ex-presidente José Sarney. Retirado da política praticada em ambientes públicos, ao longo da crise Sarney acionou por telefone pelo menos cinco ministros do Supremo. Surpreendeu Renan não só seu comprometimento, como o fato de o ex-presidente ter ido à residência oficial durante todos os dias em que o imbróglio se desenrolou. Aos 86 anos, Sarney procura não sair de casa nem para visitas a Temer. Em março deste ano, acuada pela ameaça de impeachment, a ainda presidente Dilma Rousseff teve de ir até a residência do ex-presidente para se aconselhar.

Renan também consultou o ex-ministro da Justiça e ex-presidente do Supremo Nelson Jobim, hoje advogado consultor de empreiteiras enroladas na Lava Jato. Foi ele, segundo um senador e um aliado de Michel Temer ouvidos por ÉPOCA, quem sugeriu a Renan que se recusasse a assinar a notificação judicial da decisão de Marco Aurélio, sob a justificativa de que o Senado sairia enfraquecido e abriria um precedente gravíssimo. Temer acompanhava as movimentações por telefone. Por volta da meia-noite, recebeu no Planalto o líder do governo no Congresso, Romero Jucá, do PMDB de Roraima, que também estivera na casa de Renan. O relatório que o presidente ouviu era promissor. Um grande acordo para manter Renan na cadeira do Congresso estava traçado. O trabalho começava a dar resultado. O acórdão começava a ser construído.

O termo “acórdão” e o nome de Renan Calheiros têm caminhado juntos em vários episódios da história recente. Ao observar que o poder começa a lhe escapar pelas mãos, o senador costuma usar uma farta cartilha para se blindar. Em 2007, em duas ocasiões Renan exercitou tal habilidade. Na primeira, ofereceu cargos e emendas para conseguir sair ileso do processo de cassação do qual foi alvo, depois que foram descobertos os depósitos da construtora Mendes Junior à jornalista Mônica Veloso, feitos em seu nome. O dinheiro seria usado no pagamento da pensão à filha que Renan teve com Mônica. Poucos meses depois, o mandato de Renan voltou a ser ameaçado quando ele foi denunciado por ser dono de empresas de comunicação que estavam em nome de laranjas. Para escapar da nova investida, Renan recorreu ao governo petista e ganhou apoio em troca da votação da prorrogação da CPMF no Senado. Ficou combinado que ele seria absolvido e, em seguida, renunciaria à presidência da Casa.

SURPRESO

O presidente Michel Temer no Planalto. Ele ligou pessoalmente para a presidente do Supremo e encarregou ministros de seu governo de conversar com os magistrados sobre Renan Calheiros. 

Ecos de 2007 levaram Renan ao aperto da semana passada. O caso do dinheiro para Mônica Veloso tornou Renan réu no Supremo por peculato (apropriação de dinheiro público), em 1º de dezembro. Ao unir a condição de réu ao julgamento de novembro, no qual o Supremo decidiu que réus não podem ocupar cargos na linha de sucessão da Presidência, Marco Aurélio Mello entendeu que Renan tinha de deixar o cargo e concedeu à liminar. O afastamento, contudo, jamais se concretizou. Renan descumpriu a ordem judicial. O caso foi levado ao plenário do Supremo na quarta-feira, com a pressa que queria o governo. Graças aos votos do decano Celso de Mello, a presidente Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Teori Zavascki, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski, Renan foi excluído apenas da linha de sucessão presidencial, mas não do cargo que ocupa.

Só depois de receber os primeiros sinais de respaldo do Palácio do Planalto e, principalmente, de ministros do próprio Supremo, Renan decidiu desrespeitar a ordem de Marco Aurélio, em um movimento político calculado. Quando os caciques peemedebistas e seus aliados estavam reunidos em sua casa, ainda na noite de segunda-feira, o presidente do Senado ordenou que seus auxiliares dissessem ao oficial de justiça que fora entregar a notificação de seu afastamento que ele não estava lá. O oficial Wessel Teles de Oliveira respondeu que aquilo era uma mentira óbvia, já que conseguia ver Renan pelos vidros da casa. Um segurança então o levou a uma sala de espera perto da entrada, pediu a ele que aguardasse e fechou a porta. Minutos depois, Renan passou ao lado dessa sala para levar o ex-presidente Sarney até seu carro. Ignorou mais uma vez o oficial e pediu a ele que aparecesse às 11 horas da manhã seguinte na presidência do Senado, quando assinaria o documento.

Renan soube que os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes discordavam da decisão de Marco Aurélio.

Àquela altura, Renan não só ouvira de seus aliados que outros ministros do Supremo começavam a embarcar no plano para derrubar a decisão de Marco Aurélio, como convenceram a Mesa Diretora do Senado a apoiar, quase por unanimidade, que ele descumprisse a liminar e continuasse no cargo. Sentindo-se confiante, Renan foi a público criticar a decisão do ministro contra si. “A democracia, mesmo no Brasil, não merece esse fim”, disse, confundindo sua figura de réu à do Senado como instituição. Reunido com a cúpula da Casa, Renan lembrou que, quando comandava o Senado, Antônio Carlos Magalhães certa vez recebeu de um auxiliar um documento entregue por um oficial de justiça. Perguntou o que era aquilo e, ao saber que se tratava da notificação de uma decisão judicial, fez cara de desdém, tomou as folhas de papel, rasgou o calhamaço e disse ao assessor para devolvê-lo em pedaços. “Se ACM estivesse em meu lugar, jamais cumpriria essa medida absurda”, disse Renan, comparando-se a um dos últimos grandes  coronéis da política brasileira, que teve o poder de dobrar presidentes dos Três Poderes da República.

A operação para salvar Renan envolveu até a oposição. Tanto o PT, parceiro do PMDB até o impeachment, quanto o PSDB, sócio desde o impeachment, ajudaram. Quando o vice-presidente do Senado, Jorge Viana, do PT do Acre, chegou à casa de Renan na noite de segunda-feira, a preocupação do Planalto era se suas cores partidárias prevaleceriam sobre seu compromisso com a pauta da Casa. Se esse fosse o caso, estava sob risco o apertado calendário para a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estabelece um teto para os gastos públicos – considerada essencial pelo governo para a sobrevivência financeira do país. Viana é o sucessor natural de Renan. Em 2007, por arranjos políticos que podem ser confundidos com coincidências, o então senador Tião Viana, irmão de Jorge, também era vice quando Renan renunciou ao cargo. A exemplo de Tião, que convocou novas eleições, das quais saiu vitorioso Garibaldi Alves, do PMDB do Rio Grande do Norte, único candidato, Jorge Viana sugeriu a Renan que faria o mesmo.

DISCRETO

O ex-presidente José Sarney. Ele abandonou sua reclusão e esteve todos os dias na casa de Renan. Falou com pelo menos cinco ministros do Supremo. 

Naquela noite, Jorge Viana confessou ao peemedebista que preferia que houvesse outro eleito para comandar a Casa, para que não recaísse sobre seus ombros a responsabilidade de colocar em votação a PEC do teto dos gastos. Combatente feroz da proposta, o PT já havia sinalizado que não admitiria que Viana, como presidente da Casa, seguisse o calendário deixado por Renan e pautasse a votação da PEC em segundo turno para terça-feira, dia 13. O governo conta com tal vitória ainda para 2016, por ser a única notícia positiva que sua equipe econômica pode apresentar aos brasileiros desde o início da gestão de Henrique Meirelles na Fazenda. A estratégia de Viana de convocar nova eleição, porém, era incompatível com o regimento da Casa. Não havia a opção de eleger um novo presidente para aprovar a PEC.

Viana só deixou a casa de Renan às 2 horas da manhã da terça-feira. Horas depois, convocado ao Senado para uma reunião de emergência, se absteve de assinar a nota em que a Mesa da Casa se recusava a cumprir a decisão de Marco Aurélio. O petista foi imediatamente despachado ao Supremo para uma conversa com a presidente Cármen Lúcia. Relatou o impasse em que o Senado se encontrava; disse que ele mesmo, beneficiário do afastamento de Renan, não queria assumir a presidência da Casa e pediu uma solução negociada. Cármen chamou outros cinco colegas para ouvir o relato. Houve críticas à atitude de Marco Aurélio de decidir sozinho pelo afastamento de Renan e um entendimento de que era possível mudar o cenário. Teori Zavascki, segundo Viana, disse aos colegas mais tarde, só recomendou que Renan assinasse a notificação e cumprisse a liminar, em um sinal de respeito ao Supremo. Renan não seguiu o conselho, mas evitou praticar atos típicos, como sentar-se na cadeira de presidente no plenário e assinar qualquer documento sob responsabilidade da chefia da Casa.

FIEL

O vice-presidente do Senado, Jorge Viana. Como petista, ele não queria passar pelo constrangimento de colocar em votação a PEC do teto dos gastos. Foi enviado ao Supremo para negociar uma saída.

Diante do risco de que Viana não desse seguimento à proposta sobre o teto de gastos em sua breve gestão, os tucanos também se mobilizaram em favor de Renan. Na manhã de terça-­feira, o senador Aécio Neves, presidente do PSDB, revelou ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a preocupação dos senadores com a PEC e ouviu dele a promessa de que ligaria para Cármen Lúcia. O principal interesse dos tucanos na aprovação da PEC é mais mundano do que proteger as finanças públicas. Preocupados com a possibilidade de disputar eleições em 2018 com um país destruído economicamente, líderes tucanos pressionam para influir mais nos rumos dados pela equipe econômica. No cardápio de sugestões está o corte mais profundo dos juros e a desburocratização do ambiente de negócios. Naquele momento, o temor do PSDB era que a não aprovação da PEC em 2016, graças a Jorge Viana, retardasse ainda mais as chances de retomada na economia brasileira. A movimentação fervorosa dos tucanos arrancou não só elogios de Michel Temer, como também a aceleração da escolha do deputado Antonio Imbassahy, do PSDB da Bahia, para ocupar a Secretaria de Governo, na vaga de Ged­del Vieira Lima. O plano, no entanto, foi desacelerado mediante a resistência intempestiva dos partidos do “centrão” – aquele grupo de deputados que, no passado, obedecia a ordens do hoje presidiário Eduardo Cunha.

Quando o STF tornou oficial que a decisão de Marco Aurélio seria o primeiro item da pauta da sessão de quarta-feira, a crise institucional se transformara em um acórdão. Caberia aos magistrados encontrar argumentos jurídicos capazes de desmontar a decisão do ministro Marco Aurélio Mello, para honrar um acordo político com objetivos econômicos considerados urgentes pela cúpula do poder. Confiante de seu arsenal de apoios, Renan tornou constrangedora a situação do Supremo com todos os gestos, inclusive receber sindicalistas em seu gabinete no Senado durante o julgamento, como se nada estivesse acontecendo. De seu lugar no plenário do outro lado da praça, o ministro Marco Aurélio ressaltou a semelhança do caso de Renan com o de seu colega de partido, o ex-deputado Eduar­do Cunha, afastado da presidência da Câmara por liminar do ministro Teori Zavascki, confirmada pelo plenário. Contudo, era diferente. Ao contrário de Cunha, um egresso do baixo clero em trajetória rápida, Renan integra a elite do poder há muito tempo. Acumulou histórias e favores que lhe garantem o status de alguém considerado fundamental aos governos. Por fim, o Supremo dobrou-se a Renan e ao pragmatismo político de ocasião, que permite a ele ser tão forte. Ciente de seu feito, Renan falou com escárnio depois de ser salvo: “Não tem o que comentar da decisão judicial, decisão judicial do STF é para se cumprir”. Ele sabe que apenas alguns têm o direito de descumpri-las. Para eles existe a saída do acórdão.

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