A tensão dos dias em que os Três Poderes da República se uniram em um acórdão
construído para salvar a pele do presidente do Senado, enrolado na Justiça
Por Ana
Clara Costa e Bruno Boghossian, 09/12/2016,
www.época.com.br
O presidente Michel Temer acabara de se reunir com seus principais ministros
e líderes do Congresso para discutir a espinhosa e essencial reforma da
Previdência e conversava com alguns de seus auxiliares – entre eles os
ministros Henrique Meirelles (Fazenda), Eliseu Padilha (Casa Civil) e Alexandre
de Moraes (Justiça). Era o início da noite de segunda-feira, dia 5, e todos
haviam deixado seus celulares do lado de fora da sala, como passou a ser rotina
no Palácio do Planalto com a proliferação de gravações e vazamentos de diálogos
reservados entre os poderosos. Portanto, nada sabiam do que se passava no mundo
fora dali. A poucos metros, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM do Rio de Janeiro, espantou-se ao saber,
durante uma entrevista coletiva sobre o novo plano de aposentadorias, que o
presidente do Senado, Renan Calheiros, acabara de ser afastado do cargo. Maia voltou a
passos rápidos até a sala de reuniões para relatar o que ouvira. Entre os
presentes, a sensação naquele momento era de que o “chão se abriu”.
Uma linha direta incomum entre os Três Poderes da
República se abriu minutos depois que o ministro Marco Aurélio Mello, do
Supremo Tribunal Federal, tornou pública sua decisão de afastar Renan. Teve
início ali mesmo uma operação que envolveu o presidente da República, ministros
de Estado, juízes do Supremo Tribunal Federal, parlamentares de vários partidos
e até ex-presidentes para tentar frear uma crise institucional.
O presidente interrompeu a conversa com seus
auxiliares imediatamente e foi para seu gabinete, no andar de cima. Telefonou
para Renan, que, irritado, repetia que a decisão de Marco Aurélio era
“completamente absurda”. Temer respondeu que afastar o presidente de um Poder
de maneira monocrática – ou seja, individualmente, antes de uma votação em
plenário – era algo, no mínimo, extravagante. Chamado ao gabinete presidencial,
o ministro da Justiça recebeu a missão de procurar os integrantes do Supremo
ainda naquela noite. A mesma tarefa foi delegada a ministra-chefe da
Advocacia-Geral da União, Grace Mendonça. Temer ligou pessoalmente para a
presidente da Corte, Cármen Lúcia, e expôs o receio de que o agravamento da
crise institucional entre Judiciário e Legislativo pudesse travar o país. Em
aliança, Renan e Temer começavam, desde aquele momento, uma campanha para que a
Corte não só revertesse a decisão de Marco Aurélio, em uma saída negociada, mas
que o fizesse da maneira mais rápida possível.
Enquanto o Palácio do Planalto colocava seu plano
em ação, um segundo centro de negociação funcionava na residência oficial da
presidência do Senado, no Lago Sul, em Brasília. Surgiam ali os sinais de que a
decisão de Marco Aurélio Mello poderia ser superada com conversas políticas,
não jurídicas. Nos contatos iniciais, interlocutores de Renan e do Planalto
relatavam ao presidente do Senado que as primeiras dissonâncias surgiam nas
vozes dos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Na tarefa de sentir a
temperatura do plenário do Supremo, Renan recebeu o reforço do ex-presidente
José Sarney. Retirado da política praticada em ambientes públicos, ao longo da
crise Sarney acionou por telefone pelo menos cinco ministros do Supremo.
Surpreendeu Renan não só seu comprometimento, como o fato de o ex-presidente
ter ido à residência oficial durante todos os dias em que o imbróglio se
desenrolou. Aos 86 anos, Sarney procura não sair de casa nem para visitas a
Temer. Em março deste ano, acuada pela ameaça de impeachment, a ainda
presidente Dilma Rousseff teve de ir até a residência do ex-presidente para se
aconselhar.
Renan também consultou o ex-ministro da Justiça e
ex-presidente do Supremo Nelson Jobim, hoje advogado consultor de empreiteiras
enroladas na Lava Jato. Foi ele, segundo um senador e um aliado de Michel Temer
ouvidos por ÉPOCA, quem sugeriu a Renan que se recusasse a assinar a
notificação judicial da decisão de Marco Aurélio, sob a justificativa de que o
Senado sairia enfraquecido e abriria um precedente gravíssimo. Temer
acompanhava as movimentações por telefone. Por volta da meia-noite, recebeu no
Planalto o líder do governo no Congresso, Romero Jucá, do PMDB de Roraima, que
também estivera na casa de Renan. O relatório que o presidente ouviu era
promissor. Um grande acordo para manter Renan na cadeira do Congresso estava
traçado. O trabalho começava a dar resultado. O acórdão começava a ser
construído.
O termo “acórdão” e o nome de Renan Calheiros têm
caminhado juntos em vários episódios da história recente. Ao observar que o
poder começa a lhe escapar pelas mãos, o senador costuma usar uma farta
cartilha para se blindar. Em 2007, em duas ocasiões Renan exercitou tal
habilidade. Na primeira, ofereceu cargos e emendas para conseguir sair ileso do
processo de cassação do qual foi alvo, depois que foram descobertos os
depósitos da construtora Mendes Junior à jornalista Mônica Veloso, feitos em
seu nome. O dinheiro seria usado no pagamento da pensão à filha que Renan teve
com Mônica. Poucos meses depois, o mandato de Renan voltou a ser ameaçado
quando ele foi denunciado por ser dono de empresas de comunicação que estavam
em nome de laranjas. Para escapar da nova investida, Renan recorreu ao governo
petista e ganhou apoio em troca da votação da prorrogação da CPMF no Senado.
Ficou combinado que ele seria absolvido e, em seguida, renunciaria à
presidência da Casa.
SURPRESO
O
presidente Michel Temer no Planalto. Ele ligou pessoalmente para a presidente
do Supremo e encarregou ministros de seu governo de conversar com os
magistrados sobre Renan Calheiros.
Ecos de 2007 levaram Renan ao aperto da semana
passada. O caso do dinheiro para Mônica Veloso tornou Renan réu no Supremo por
peculato (apropriação de dinheiro público), em 1º de dezembro. Ao unir a
condição de réu ao julgamento de novembro, no qual o Supremo decidiu que réus
não podem ocupar cargos na linha de sucessão da Presidência, Marco Aurélio
Mello entendeu que Renan tinha de deixar o cargo e concedeu à liminar. O
afastamento, contudo, jamais se concretizou. Renan descumpriu a ordem judicial.
O caso foi levado ao plenário do Supremo na quarta-feira, com a pressa que
queria o governo. Graças aos votos do decano Celso de Mello, a presidente
Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Teori Zavascki, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski,
Renan foi excluído apenas da linha de sucessão presidencial, mas não do cargo
que ocupa.
Só depois de receber os primeiros sinais de
respaldo do Palácio do Planalto e, principalmente, de ministros do próprio
Supremo, Renan decidiu desrespeitar a ordem de Marco Aurélio, em um movimento
político calculado. Quando os caciques peemedebistas e seus aliados estavam
reunidos em sua casa, ainda na noite de segunda-feira, o presidente do Senado
ordenou que seus auxiliares dissessem ao oficial de justiça que fora entregar a
notificação de seu afastamento que ele não estava lá. O oficial Wessel Teles de
Oliveira respondeu que aquilo era uma mentira óbvia, já que conseguia ver Renan
pelos vidros da casa. Um segurança então o levou a uma sala de espera perto da
entrada, pediu a ele que aguardasse e fechou a porta. Minutos depois, Renan
passou ao lado dessa sala para levar o ex-presidente Sarney até seu carro.
Ignorou mais uma vez o oficial e pediu a ele que aparecesse às 11 horas da
manhã seguinte na presidência do Senado, quando assinaria o documento.
Renan
soube que os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes discordavam da decisão de
Marco Aurélio.
Àquela altura, Renan não só ouvira de seus aliados
que outros ministros do Supremo começavam a embarcar no plano para derrubar a
decisão de Marco Aurélio, como convenceram a Mesa Diretora do Senado a apoiar,
quase por unanimidade, que ele descumprisse a liminar e continuasse no cargo.
Sentindo-se confiante, Renan foi a público criticar a decisão do ministro
contra si. “A democracia, mesmo no Brasil, não merece esse fim”, disse,
confundindo sua figura de réu à do Senado como instituição. Reunido com a
cúpula da Casa, Renan lembrou que, quando comandava o Senado, Antônio Carlos
Magalhães certa vez recebeu de um auxiliar um documento entregue por um oficial
de justiça. Perguntou o que era aquilo e, ao saber que se tratava da
notificação de uma decisão judicial, fez cara de desdém, tomou as folhas de
papel, rasgou o calhamaço e disse ao assessor para devolvê-lo em pedaços. “Se
ACM estivesse em meu lugar, jamais cumpriria essa medida absurda”, disse Renan,
comparando-se a um dos últimos grandes coronéis da política brasileira,
que teve o poder de dobrar presidentes dos Três Poderes da República.
A operação para salvar Renan envolveu até a
oposição. Tanto o PT, parceiro do PMDB até o impeachment, quanto o PSDB, sócio
desde o impeachment, ajudaram. Quando o vice-presidente do Senado, Jorge Viana,
do PT do Acre, chegou à casa de Renan na noite de segunda-feira, a preocupação
do Planalto era se suas cores partidárias prevaleceriam sobre seu compromisso
com a pauta da Casa. Se esse fosse o caso, estava sob risco o apertado
calendário para a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que
estabelece um teto para os gastos públicos – considerada essencial pelo governo
para a sobrevivência financeira do país. Viana é o sucessor natural de Renan.
Em 2007, por arranjos políticos que podem ser confundidos com coincidências, o
então senador Tião Viana, irmão de Jorge, também era vice quando Renan
renunciou ao cargo. A exemplo de Tião, que convocou novas eleições, das quais
saiu vitorioso Garibaldi Alves, do PMDB do Rio Grande do Norte, único
candidato, Jorge Viana sugeriu a Renan que faria o mesmo.
DISCRETO
O
ex-presidente José Sarney. Ele abandonou sua reclusão e esteve todos os dias na
casa de Renan. Falou com pelo menos cinco ministros do Supremo.
Naquela noite, Jorge Viana confessou ao
peemedebista que preferia que houvesse outro eleito para comandar a Casa, para
que não recaísse sobre seus ombros a responsabilidade de colocar em votação a
PEC do teto dos gastos. Combatente feroz da proposta, o PT já havia sinalizado
que não admitiria que Viana, como presidente da Casa, seguisse o calendário
deixado por Renan e pautasse a votação da PEC em segundo turno para
terça-feira, dia 13. O governo conta com tal vitória ainda para 2016, por ser a
única notícia positiva que sua equipe econômica pode apresentar aos brasileiros
desde o início da gestão de Henrique Meirelles na Fazenda. A estratégia de
Viana de convocar nova eleição, porém, era incompatível com o regimento da
Casa. Não havia a opção de eleger um novo presidente para aprovar a PEC.
Viana só deixou a casa de Renan às 2 horas da manhã
da terça-feira. Horas depois, convocado ao Senado para uma reunião de
emergência, se absteve de assinar a nota em que a Mesa da Casa se recusava a
cumprir a decisão de Marco Aurélio. O petista foi imediatamente despachado ao
Supremo para uma conversa com a presidente Cármen Lúcia. Relatou o impasse em
que o Senado se encontrava; disse que ele mesmo, beneficiário do afastamento de
Renan, não queria assumir a presidência da Casa e pediu uma solução negociada.
Cármen chamou outros cinco colegas para ouvir o relato. Houve críticas à
atitude de Marco Aurélio de decidir sozinho pelo afastamento de Renan e um
entendimento de que era possível mudar o cenário. Teori Zavascki, segundo
Viana, disse aos colegas mais tarde, só recomendou que Renan assinasse a
notificação e cumprisse a liminar, em um sinal de respeito ao Supremo. Renan
não seguiu o conselho, mas evitou praticar atos típicos, como sentar-se na cadeira
de presidente no plenário e assinar qualquer documento sob responsabilidade da
chefia da Casa.
FIEL
O vice-presidente do Senado, Jorge Viana. Como petista, ele não queria passar pelo constrangimento de colocar em votação a PEC do teto dos gastos. Foi enviado ao Supremo para negociar uma saída.
Diante do
risco de que Viana não desse seguimento à proposta sobre o teto de gastos em
sua breve gestão, os tucanos também se mobilizaram em favor de Renan. Na manhã
de terça-feira, o senador Aécio Neves, presidente do PSDB, revelou ao
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a preocupação dos senadores com a PEC e
ouviu dele a promessa de que ligaria para Cármen Lúcia. O principal interesse
dos tucanos na aprovação da PEC é mais mundano do que proteger as finanças
públicas. Preocupados com a possibilidade de disputar eleições em 2018 com um
país destruído economicamente, líderes tucanos pressionam para influir mais nos
rumos dados pela equipe econômica. No cardápio de sugestões está o corte mais
profundo dos juros e a desburocratização do ambiente de negócios. Naquele
momento, o temor do PSDB era que a não aprovação da PEC em 2016, graças a Jorge
Viana, retardasse ainda mais as chances de retomada na economia brasileira. A
movimentação fervorosa dos tucanos arrancou não só elogios de Michel Temer,
como também a aceleração da escolha do deputado Antonio Imbassahy, do PSDB da
Bahia, para ocupar a Secretaria de Governo, na vaga de Geddel Vieira Lima. O
plano, no entanto, foi desacelerado mediante a resistência intempestiva dos
partidos do “centrão” – aquele grupo de deputados que, no passado, obedecia a
ordens do hoje presidiário Eduardo Cunha.
Quando o STF tornou oficial que a decisão de Marco
Aurélio seria o primeiro item da pauta da sessão de quarta-feira, a crise
institucional se transformara em um acórdão. Caberia aos magistrados encontrar
argumentos jurídicos capazes de desmontar a decisão do ministro Marco Aurélio
Mello, para honrar um acordo político com objetivos econômicos considerados
urgentes pela cúpula do poder. Confiante de seu arsenal de apoios, Renan tornou
constrangedora a situação do Supremo com todos os gestos, inclusive receber
sindicalistas em seu gabinete no Senado durante o julgamento, como se nada
estivesse acontecendo. De seu lugar no plenário do outro lado da praça, o
ministro Marco Aurélio ressaltou a semelhança do caso de Renan com o de seu
colega de partido, o ex-deputado Eduardo Cunha, afastado da presidência da
Câmara por liminar do ministro Teori Zavascki, confirmada pelo plenário. Contudo,
era diferente. Ao contrário de Cunha, um egresso do baixo clero em trajetória
rápida, Renan integra a elite do poder há muito tempo. Acumulou histórias e
favores que lhe garantem o status de alguém considerado fundamental aos
governos. Por fim, o Supremo dobrou-se a Renan e ao pragmatismo político de
ocasião, que permite a ele ser tão forte. Ciente de seu feito, Renan falou com
escárnio depois de ser salvo: “Não tem o que comentar da decisão judicial,
decisão judicial do STF é para se cumprir”. Ele sabe que apenas alguns têm o
direito de descumpri-las. Para eles existe a saída do acórdão.
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