Ninguém nos Estados Unidos se xingaria por causa das eleições
presidenciais daqui
Por Augusto
Nunes, 14/11/2016,
www.veja.com.br
Texto de Valentina de Botas
“Canalha, mídia golpista, vocês vão se f* porque o
povo não é bobo e ninguém cai mais nessa conversa de uma elite fascistoide,
chora direitinha!!!!!! Chupaaaaa!!!! A casa grande surta quando a senzala anda
de avião!!!!!!”. Comentário modelo de devotos da súcia petista quando Dilma se
reelegeu.
“Canalha, mídia golpista, vocês vão se f* porque o
povo não é bobo e os comunistazinhos escrotos disfarçados de jornalistas foram
desmascarados. Trump é a vitória da direita contra a tramóia do jornalixo!!!!
Chora esquerdalha!!!!! Chupa"!!!!!
Comentário modelo de admiradores brasileiros de Donald Trump nas redes sociais a artigos do Augusto Nunes, meu e do Oliver sobre a vitória do americano.
Desculpe-me o eventual leitor deste texto,
desculpem-me as famílias brasileiras nos lares das quais este texto
eventualmente for lido, mas os dois modelos são um extrato real do mundo-cão
virtual. Atenção, não me refiro aos moderados na expressão da preferência por
Trump, me refiro apenas aos radicais; gente que despeja no teclado a própria
infelicidade ou a felicidade deformada. Quando afirmei aqui que os dois bandos
radicais se igualam, considerava o comportamento de manada, a obtusidade, o
ódio à divergência tratada como imperdoável ofensa pessoal. Mas são idênticos
também na linguagem e no estilo descritivo-narrativo. Além disso, ambos vêem
conspiração no sibilo do vento e atrelam a perfeição de seus ídolos à
imperfeição dos que não os reconhecem como perfeitos. O pensamento é meio
circular, mas não há o que fazer com essa lógica.
Assim, o bando radical esquerdista que vê golpe no
impeachment e conspiração na Lava Jato para impedir que Lula se à derrota
em 2018, acha o caudilho tão superior que sequer ele deveria ser submetido às
leis. O bando radical de direita, que vê em Trump a direita que ele não é, acha
o americano tão poderoso que, por uma alquimia de que só ele é capaz, o
jornalista que, um texto antes, era acusado de golpista e reacionário pelo
primeiro bando, no texto seguinte é declarado pelo segundo bando um comunista que
tramou a derrota do candidato dos red necks. Claro que a imprensa, sobretudo a
americana, errou, mas ainda que Trump fosse o que seus adoradores acham que ele
é, restaria a qualquer pessoa o direito de achar que ele não é e isso não a
transformar numa caça.
Borges conta no miniconto “Diálogo sobre um
diálogo” que naquela noite enquanto o grande Macedônio Fernández lhe explicava
a tese de que a alma é imortal e que a morte é o feito mais nulo que pode
suceder a um homem, ele brincava com uma navalha do amigo, abrindo-a e
fechando-a. Mas um acordeom no vizinho insistia em tocar a “Cumparsita”,
perturbando a conversa. Borges propôs ao amigo que se suicidassem para
conversarem em paz. O radicalismo é o modo mais eficaz de destruir aquilo por
que se luta, a eleição foi nos Estados Unidos – onde ninguém se xingaria por
causa das eleições presidenciais daqui, francamente – e não precisávamos
importar essa questão para reaquecer ódios nutridos por liberticidas depois de
os democratas, e não os radicais (como os defensores de intervenção militar),
obtermos o impeachment de Dilma Rousseff e surrarmos as esquerdas nas eleições
municipais escolhendo também moderados.
Os brasileiros radicais flertam com a morte do
senso interno – o mais importante – de liberdade, num suicídio (simbólico!)
inútil resultante do gozo em manada no ódio que os anima e que só enxergam no
outro, atestando a deformação de se assemelhar àquilo que combatem. Borges
encerra o miniconto: francamente, não me lembro se nos suicidamos naquela
noite.
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