Mesmo na cadeia, Sérgio Cabral continua sendo mais igual do que os
demais cidadãos
Por Augusto
Nunes, 22/11/2016,
www.veja.com.br
Texto de José Nêumanne publicado no Estadão
O ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral
começou na política como deputado estadual, implacável perseguidor de corruptos
e corruptores. Perseguido pelos desiludidos de 2013, que invadiram a calçada de
seu refúgio no Leblon, renunciou em 2014, não se candidatou a nenhum mandato
público e terminou perdendo sua prerrogativa de foro. Alcançado pelas afiadas
garras da Lava Jato, foi preso sob a acusação de ter surrupiado dos cofres
públicos R$ 224 milhões. Uma fortuna, hein?
Os investigadores da Operação Calicute, cidade da
Índia onde outro Cabral, Pedro Álvares, descobridor do Brasil, conheceu a
derrota e teve iniciada a decadência, acreditam que ele operou um “banco
paralelo” à sombra de uma empresa transportadora de valores para receber,
guardar e distribuir dinheiro vivo para a mulher, Adriana Ancelmo, e a mãe,
Magali. E mais uma penca de gatunos amestrados, todos mimoseados com jóias,
cargos públicos e porcentagens em obras contratadas pelo Estado e outras
benesses. Descoberto, localizado e preso, foi fichado e trancafiado numa cela
em Bangu. Ainda assim, goza de privilégio inestimável: seus cinco companheiros
de cela não são bandidos comuns, que poderiam machucá-lo, mas cúmplices de suas
aventuras folgazãs e de suas atuais desventuras.
A forma como lavou dinheiro sujo se assemelha ao
dito Departamento de Operações Estruturadas de sua parceira Odebrecht, um
sofisticado data Center na Suíça. E também reproduz a tecnologia de
entesouramento e investimento de uma prática ancestral no Estado que governou.
Os bicheiros de antigamente, praticantes do “vale o escrito”, também driblavam
os controles fiscais, abrigados sob a definição penal da contravenção, ou seja,
quase crime. E freqüentavam a fina flor da high society carioca
nos melhores salões e, sobretudo, no Sambódromo, dirigindo escolas de samba,
coloridas e cultuadas lavanderias de valores. Agora como dantes no quartel de
Abrantes, apontadores da loteria popular de Saenz Peña, nome de praça na cidade
ex-Maravilhosa, continuam entregando o “prêmio do delegado” e convivendo com
crocodilos em piscinas. O furto político era até pouco menos arriscado, mas
deixou de ser.
Anthony Garotinho, ex-governador lançado na
política pelo socialista moreno Leonel Brizola e guia de Cabral em sua ascensão
aos cargos de mando no Estado mais charmoso do País, foi pilhado em delito mais
antigo do que os pontos de bicho e as bocas de fumo de antanho. Comprar votos
foi a forma que a elite dirigente nacional encontrou para compensar a extinção
da eleição de bico de pena da Primeira República dos coronéis da guarda
nacional. Ao soba de Campos dos Goytacazes repugna a mania de ostentação de seu
antigo discípulo. Distribuindo “chequinhos” a necessitados, garantiu a
permanência do clã na prefeitura municipal local, a eleição de 11 vereadores e
o ingresso de Clarissa, amada filhota dele e da prefeita Rosinha, na Câmara dos
Deputados. Obediente ao conselho paterno de ajudar a ex-presidente Dilma
Rousseff a ficar no cargo máximo, ela alegou resguardo de maternidade recente
para não votar pela abertura do processo de impeachment da madama pela Câmara e
seu envio ao Senado. A filha obediente pagou pelo desrespeito ao fechamento de
questão do PR, legenda pela qual se elegeu, sendo expulsa pela ausência, que
valeu como voto contra o impeachment da deposta, vulgo Janete.
Como na República de Pilatos dos velhos tempos,
“uma mão lava a outra” e a mesma água de enxaguar propinas evitou a sofrência
de “meu pai não é bandido”, por ela berrado à porta do Hospital Souza Aguiar,
no complexo presidiário povoado por feras enlouquecidas de vingança. Afinal,
quando Rosinha foi governadora, ele não chegou a ser secretário de Segurança
Pública? Como aquele agente funerário que foi chamado para maquiar o filho de
dom Corleone no Poderoso Chefão, haveria alguém a quem pedir socorro.
Ocorreu-lhe, então, instruir seus advogados Jonas Lopes de Carvalho Neto e
Fernando Fernandes a procurarem a mais jovem ministra do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), com a qual já mantivera contato, Luciana Lóssio. Nomeada pela
presidenta afinal deposta, ela poderia evitar humilhação similar à do
ex-afilhado e ora desafeto Cabral. As fotos tiradas à entrada deste no presídio
para a ficha criminal foram exibidas nos meios de comunicação com estardalhaço
idêntico ao dispensado àqueles flagrantes da festa dos guardanapos na cabeça em
restaurante de alto luxo em Paris, que Garotinho divulgou em seu blog.
A pressurosa ministra não permitiu que o pai da
compreensiva parlamentar passasse sequer uma noite na companhia cruel de
antigos desafetos, mais perigosos do que os cinco grã-finos e o colega
ex-governador. Dra. Lóssio fora antes advogada de Roseana Sarney, quando esta,
derrotada nas urnas pelo adversário Jackson Lago, retomou o posto de
governadora do Maranhão, direito do clã inaugurado pelo pai ainda no tempo em
que a lei eleitoral dava ao vencido na eleição o cargo que o adversário o
houvesse derrotado de maneira ilícita.
Militante petista investida em mandato inviolável,
a caridosa magistrada pouco se importou com a divulgação das instruções do réu
em questão a seus causídicos, como divulgada fora simultaneamente a
investigação aberta pelo Ministério Público Eleitoral sobre denúncia de
tentativa de suborno do juiz pelo acusado. O cargo da jovem senhora é vitalício
e conta com a proteção automática dos pares. O nobre colegiado apressou-se a
soltar uma nota garantindo que todos os seus ministros têm “idoneidade moral” e
que as decisões refletem “profundo embasamento teórico”, antes mesmo que
qualquer desavisado duvidasse publicamente desses atributos.
Antes de ser solto pela decisão da misericordiosa
ministra amiga, o ex-governador protagonizou esperneio registrado por câmeras,
ao som da gritaria histérica da mulher e da filha captada por microfones dos
meios de comunicação. Piedosos garantistas de quatro costados reclamaram da
humilhação imposta ao insigne acusado. Esqueceram-se de que o episódio motivou
decisão histórica da jurisconsulta Lóssio. Graças a sua canetada, a piada do
“jus sperniandi” (em latim vulgar, direito de espernear) tornou-se
jurisprudência na Justiça Eleitoral tupiniquim.
A cena inusitada, a decisão piedosa e o flagrante
pornográfico do investimento imobiliário do secretário de governo de Temer
(ex-vice da presidenta deposta), ferindo o decoro da paisagem de Salvador, sob
a omissão licenciosa do temeroso chefão, ampliam o alcance de constatação de
Gilberto Gil. Este outro baiano cantou: “O Rio de Janeiro continua sendo”.
Pelo visto, o Brasil também reproduz a constatação
final de George Orwell em A Revolução dos Bichos: “Todos são iguais
perante a lei, mas alguns são mais iguais do que os outros”. Quem quer um
exemplo? A Comissão de Ética Pública da Presidência começou a votar a decisão
se abrirá, ou não, inquérito contra Geddel Vieira Lima, o excelentíssimo
padroeiro do espigão: cinco dos sete votos foram a favor e o sexto, José
Saraiva, pediu vista para impedir o vexame. Ganhará um docinho de caju de dona
Carminha Dantas quem adivinhar quem o indicou para a oportuna sinecura. Pois
foi mesmo o fiel escudeiro de Temer – um que é apelidado de Boca de Jacaré nas
proximidades da Terreiro de Jesus. Deus nos acolha e guarde, irmãos sem opa,
abandonados neste bordel em cuja parede um quadro de Cristo a tudo assiste e
nada fala nem faz para impor a ordem.
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