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sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Os 50 anos do golpe militar e as heranças do período mais sombrio da história do País



Historiadora paraisense relembra fatos da ditadura e o seu legado para a democracia brasileira

Por Ralph Diniz, 06/04/2014,
www.jornaldosudoeste.com.br


Dia 31 de março de 1964: insatisfeitos com o governo democraticamente eleito de João Goulart, as Forças Armadas brasileiras apoiadas por alguns governadores deram início àquele que é considerado um dos momentos mais marcantes e questionados da história política do País: a ditadura militar

Durante esse período, que perdurou por mais de 20 anos, os militares tomaram de assalto o poder e destituíram o chefe supremo do País. Além disso, prenderam milhares de pessoas sob a acusação de subversão, cassaram parlamentares, instituíram a censura e deram início a uma infindável sessão de espancamentos e torturas das mais cruéis e infames jamais vistas.

Semana passada, o golpe militar completou 50 anos e a imprensa de todo o País realizou uma série de reportagens especiais sobre o momento mais tenso e reprimido da história do Brasil; no Jornal do Sudoeste não seria diferente. Nas próximas linhas, a historiadora Letícia Pimenta de Almeida, de São Sebastião do Paraíso, fala sobre a ação dos militares e as heranças deixadas para os dias de hoje.

O GOLPE

Conforme explica a historiadora, os moldes populistas do governo de João Goulart (que assumiu após a renúncia de Jânio Quadros) e sua tradição de antigo líder sindical, assim como a sua história como ministro do Trabalho de Vargas (também populista) contribuíram para lhe criar uma imagem de um “líder comunista” e foram motivos suficientes para legitimar o golpe militar. As prometidas Reformas de Base, controversas à época, teriam sido o último pretexto que a oposição necessitava para alavancar a tomada do poder. “O golpe militar ocorreu dias após o anuncio do presidente quanto às tais reformas e uma noite depois de um discurso famigerado de Jango”.

Letícia conta que o contexto mundial daquele momento era o da Guerra Fria, onde o mundo se bipartia. “Os capitalistas contra os comunistas duelavam em uma guerra de nervos, onde ostentar poder e aliados era fundamental. Houve então uma orientação norte-americana aos militares brasileiros, inclusive um apoio no dia 31 de março de 1964, em que foi deflagrada a Operação Brother Sam”, lembra. Essa operação consistia em uma intervenção militar no Brasil, por meio do envio de armas e munição, navios petroleiros, aviões de caça, helicópteros e outros. “Tudo isso para destituir um governo de ‘ameaça comunista’ em que os militares, detentores do arsenal bélico brasileiro, não eram opositores”, completa.

Ao explicar esse trecho da história, Letícia de Almeida declara que deseja mostrar o quanto a justificativa dos militares para o golpe foi “sensacionalista”. “Foi como se o país estivesse sob ameaça de se transformar em comunista pelas mãos de João Goulart. Enquanto que, na verdade, o golpe nasceu de um choque entre um sistema capitalista mais aberto e outro um pouco menos. Jango não era um revolucionário socialista, era sim um burguês reformista que por ocasião contrariava os interesses norte-americanos. É nesse contexto que surge uma campanha de desestabilização do governo em prol de conter o avanço dos ideais soviéticos e favorecer a entrada de empresas dos EUA das quais se favoreciam as elites brasileiras desde o início da República. O então presidente se encontrava envolto em uma grande fragilidade ideológica-política e com pouco ou nenhum espaço para negociações”, relata. 

Sendo assim, para a historiadora, o golpe militar de 1964 foi, por tanto, em nome do interesse da nação brasileira, e embasada no senso comum da vontade da maioria, mas limitando seu poder. “Esses limites da ditadura já são de conhecimento de todos e foram tão bem aceitos por isso: quem as impunha era uma elite que usava do autoritarismo por ‘defender’ a nação”.

DEMOCRACIA EM FORMAÇÃO

No dia 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral escolheria o deputado Tancredo Neves, que concorreu com Paulo Maluf, como novo presidente da República. Ele fazia parte da Aliança Democrática, grupo de oposição formado pelo PMDB e pela Frente Liberal. Era o fim do regime militar e o início do processo de redemocratização do Brasil.

Com o passar dos anos, porém, a democracia brasileira foi (e ainda é) colocada em xeque por parte da população, sendo que, a maioria destes, culpa o período da ditadura militar como a causa de todos os defeitos do atual sistema político do País. Letícia, no entanto, discorda e aponta outros fatores. “Há quem pense que a democracia que vivemos hoje seja uma falácia. O culpado sendo o regime político vivido de 1964-85, que decapitou toda e qualquer forma de democracia, de direito à expressão e ampla participação política. Entretanto, o molde de democracia na contemporaneidade não é único. São diversas as acepções que envolvem as delimitações geradas pela prática democrática”, explica.

De acordo com ela, para compreender isso, é necessário perceber que a América Latina esteve tomada durante certo tempo pelas ditaduras militares, mas que cada nação reagiu a seu modo, de acordo com os “participantes do jogo”. “Para tal defendo então que não vivemos em uma democracia fingida, mas sim em uma das novas democracias pós-ditaduras da América Latina. Ela engatinhou por muito tempo, ainda possui pontos frágeis, entretanto, todo período de transição é conturbado e sua consolidação pode ser vista tomando formas particulares”, afirma.

A historiadora lembra ainda que, segundo cientistas políticos, o dinamismo da democracia leva-a igualmente a seus próprios antídotos contra os males gerados pela estabilidade e acomodação. “Assim foi ao entrarem no regime e ao saírem dele. O que vemos hoje como herança desse período que viveu o Brasil é uma das novas democracias da América Latina, que ainda não chegou a sua completa consolidação, mas que, devido ao retrocesso da ditadura, caminhou para uma reorganização. É garantido que o período de transição foi problemático ao analisarmos a política brasileira”, comenta.

... E AS HERANÇAS DO REGIME

Corrupção

Outra herança que pesa de forma negativa para a democracia brasileira, segundo Letícia, é a corrupção e seus reflexos. “A maior parte da população se viu aquietada perante os abusos de poder do governo militar. Talvez, essa falta de contestação tenha sido levada para o período de redemocratização, acomodando os cidadãos até provocar um protesto ou outro isoladamente. Os soluços de revolta entre um impeachment e algumas manifestações como as de 2013 são raras amostras concretas de que a nação está insatisfeita com os políticos eleitos para representar o povo”.

Oposição que não se opõe

A entrevistada aponta como um exemplo clássico disso a dificuldade em se estabelecer partidos notoriamente de esquerda ou de direita. “Aconteceu na Revolução Francesa, mas no Brasil isso é exagerado. O discurso é um, e as ações enquanto governo instituído são dicotômicas. Analisando a política qual nos encontramos hoje, passamos por avanços sociais engrandecedores, todavia, os projetos econômicos permanecem ao gosto das elites tradicionais e aparentemente não têm anseio algum de mudar de foco tão cedo”, diz.

Com o seu posicionamento, Letícia de Almeida não nega a existência de uma oposição política no Brasil. Contudo, ela afirma sentir a falta de opositores fortalecidos e embasados teoricamente em pressupostos originais de criação de seus partidos. “As demandas teóricas que rodam a engrenagem mestra do fazer social muito frequentemente são relembradas somente a cada quatro anos (mesma regularidade com que a maior parte da população avalia o governo), mas são deixadas de lado assim que um político assume uma cadeira”, aponta.

Dívidas

Os últimos anos da ditadura militar deixaram uma conta a pagar muito cara para o bolso dos brasileiros. A dívida externa e a inflação na década de 1980 eram muito elevadas e, por muito pouco, o País não enfrentou um verdadeiro colapso. A historiadora, porém, afirma que o Brasil conseguiu diminuir a desigualdade entre as classes econômicas, melhorando a qualidade de vida das mais baixas. “Hoje elas têm acesso a mecanismos de inserção social relevantes para tal, como a facilidade ao acesso ao ensino superior de qualidade. Esse aspecto é bem importante para analisarmos os avanços da democracia, apesar da herança nefasta e emblemática deixada nos pensamentos acerca da mesma”, comenta.

RESSALVA

Mesmo apontando diversas “heranças malditas” do regime, a historiadora pondera ao afirmar que seria inadequado dizer que todos os males do Brasil nasceram após os anos em que os militares estiveram no poder. Conforme explica, a desigualdade, o cerceamento da participação política, a corrupção e o clientelismo, por exemplo, sempre foram características do País desde os primeiros anos da República. “E como bem colocou o historiador Boris Fausto, não seria da noite para o dia que todos esses problemas seriam resolvidos somente com o regresso da democracia. O fato de que tenha havido um aparente acordo geral pela democracia por parte de quase todos os atores políticos facilitou a continuidade de práticas contrárias a uma verdadeira democracia. Deste modo, o fim do autoritarismo levou o País mais a uma situação democrática do que a um regime democrático consolidado”.

PAPEL DO POVO

Letícia de Almeida declara que as instituições mudam de tempos em tempos, seus lideres mudam com elas e suas ideologias não são mais as mesmas, levando consigo conceitos e valores. Ela defende que essa democracia em construção tem muito mais a ver com a atuação dos eleitores do que com a dos elegidos, “pois é só a partir das exigências dessa maioria que a consolidação do estado de direito poderá ser vista com total positividade”.

Por fim, a historiadora propõe uma reflexão: “Será que não continuamos um povo inculto e despreparado para a política brasileira? O que vemos não são cidadãos pouco articulados com a política e seus compromissos e deveres para com a democracia em que vivem? Por 20 anos homens e mulheres lutaram para que vivêssemos em um País democrático e com livre poder de expressão, e é nisso que nos encontramos hoje. Se você estivesse nos anos de chumbo, lutaria arriscando a própria vida pelo País que temos hoje?”, conclui.

Letícia de Almeida é formada em História pela Universidade Estadual de São Paulo.
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Publicada em 06/04/2014, SAO SEBASTIAO DO PARAISO  

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