Historiadora paraisense relembra
fatos da ditadura e o seu legado para a democracia brasileira
Por Ralph
Diniz, 06/04/2014,
www.jornaldosudoeste.com.br
Dia 31 de março de 1964: insatisfeitos com o
governo democraticamente eleito de João Goulart, as Forças Armadas brasileiras
apoiadas por alguns governadores deram início àquele que é considerado um dos
momentos mais marcantes e questionados da história política do País: a ditadura militar.
Durante esse período, que perdurou por mais de 20
anos, os militares tomaram de assalto o poder e destituíram o chefe supremo do
País. Além disso, prenderam milhares de pessoas sob a acusação de subversão,
cassaram parlamentares, instituíram a censura e deram início a uma infindável
sessão de espancamentos e torturas das mais cruéis e infames jamais vistas.
Semana passada, o golpe militar completou 50 anos e
a imprensa de todo o País realizou uma série de reportagens especiais sobre o
momento mais tenso e reprimido da história do Brasil; no Jornal do Sudoeste
não seria diferente. Nas próximas linhas, a historiadora Letícia Pimenta de
Almeida, de São Sebastião do Paraíso, fala sobre a ação dos militares e as
heranças deixadas para os dias de hoje.
O GOLPE
Conforme explica a historiadora, os moldes
populistas do governo de João Goulart (que assumiu após a renúncia de Jânio
Quadros) e sua tradição de antigo líder sindical, assim como a sua história
como ministro do Trabalho de Vargas (também populista) contribuíram para lhe
criar uma imagem de um “líder comunista” e foram motivos suficientes para
legitimar o golpe militar. As prometidas Reformas de Base, controversas à
época, teriam sido o último pretexto que a oposição necessitava para alavancar
a tomada do poder. “O golpe militar ocorreu dias após o anuncio do presidente
quanto às tais reformas e uma noite depois de um discurso famigerado de Jango”.
Letícia conta que o contexto mundial daquele
momento era o da Guerra Fria, onde o mundo se bipartia. “Os capitalistas contra
os comunistas duelavam em uma guerra de nervos, onde ostentar poder e aliados
era fundamental. Houve então uma orientação norte-americana aos militares
brasileiros, inclusive um apoio no dia 31 de março de 1964, em que foi
deflagrada a Operação Brother Sam”, lembra. Essa operação consistia em uma
intervenção militar no Brasil, por meio do envio de armas e munição, navios
petroleiros, aviões de caça, helicópteros e outros. “Tudo isso para destituir
um governo de ‘ameaça comunista’ em que os militares, detentores do arsenal
bélico brasileiro, não eram opositores”, completa.
Ao explicar esse trecho da história, Letícia de
Almeida declara que deseja mostrar o quanto a justificativa dos militares para
o golpe foi “sensacionalista”. “Foi como se o país estivesse sob ameaça de se
transformar em comunista pelas mãos de João Goulart. Enquanto que, na verdade,
o golpe nasceu de um choque entre um sistema capitalista mais aberto e outro um
pouco menos. Jango não era um revolucionário socialista, era sim um burguês
reformista que por ocasião contrariava os interesses norte-americanos. É nesse
contexto que surge uma campanha de desestabilização do governo em prol de
conter o avanço dos ideais soviéticos e favorecer a entrada de empresas dos EUA
das quais se favoreciam as elites brasileiras desde o início da República. O
então presidente se encontrava envolto em uma grande fragilidade
ideológica-política e com pouco ou nenhum espaço para negociações”,
relata.
Sendo assim, para a historiadora, o golpe militar
de 1964 foi, por tanto, em nome do interesse da nação brasileira, e embasada no
senso comum da vontade da maioria, mas limitando seu poder. “Esses limites da
ditadura já são de conhecimento de todos e foram tão bem aceitos por isso: quem
as impunha era uma elite que usava do autoritarismo por ‘defender’ a nação”.
DEMOCRACIA EM FORMAÇÃO
No dia 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral
escolheria o deputado Tancredo Neves, que concorreu com Paulo Maluf, como novo
presidente da República. Ele fazia parte da Aliança Democrática, grupo de
oposição formado pelo PMDB e pela Frente Liberal. Era o fim do regime militar e
o início do processo de redemocratização do Brasil.
Com o passar dos anos, porém, a democracia
brasileira foi (e ainda é) colocada em xeque por parte da população, sendo que,
a maioria destes, culpa o período da ditadura militar como a causa de todos os
defeitos do atual sistema político do País. Letícia, no entanto, discorda e
aponta outros fatores. “Há quem pense que a democracia que vivemos hoje seja
uma falácia. O culpado sendo o regime político vivido de 1964-85, que decapitou
toda e qualquer forma de democracia, de direito à expressão e ampla
participação política. Entretanto, o molde de democracia na contemporaneidade
não é único. São diversas as acepções que envolvem as delimitações geradas pela
prática democrática”, explica.
De acordo com ela, para compreender isso, é
necessário perceber que a América Latina esteve tomada durante certo tempo
pelas ditaduras militares, mas que cada nação reagiu a seu modo, de acordo com
os “participantes do jogo”. “Para tal defendo então que não vivemos em uma
democracia fingida, mas sim em uma das novas democracias pós-ditaduras da
América Latina. Ela engatinhou por muito tempo, ainda possui pontos frágeis,
entretanto, todo período de transição é conturbado e sua consolidação pode ser
vista tomando formas particulares”, afirma.
A historiadora lembra ainda que, segundo cientistas
políticos, o dinamismo da democracia leva-a igualmente a seus próprios
antídotos contra os males gerados pela estabilidade e acomodação. “Assim foi ao
entrarem no regime e ao saírem dele. O que vemos hoje como herança desse
período que viveu o Brasil é uma das novas democracias da América Latina, que
ainda não chegou a sua completa consolidação, mas que, devido ao retrocesso da
ditadura, caminhou para uma reorganização. É garantido que o período de
transição foi problemático ao analisarmos a política brasileira”, comenta.
... E AS HERANÇAS DO REGIME
Corrupção
Outra herança que pesa de forma negativa para a
democracia brasileira, segundo Letícia, é a corrupção e seus reflexos. “A maior
parte da população se viu aquietada perante os abusos de poder do governo
militar. Talvez, essa falta de contestação tenha sido levada para o período de
redemocratização, acomodando os cidadãos até provocar um protesto ou outro
isoladamente. Os soluços de revolta entre um impeachment e algumas
manifestações como as de 2013 são raras amostras concretas de que a nação está
insatisfeita com os políticos eleitos para representar o povo”.
Oposição que não se opõe
A entrevistada aponta como um exemplo clássico
disso a dificuldade em se estabelecer partidos notoriamente de esquerda ou de
direita. “Aconteceu na Revolução Francesa, mas no Brasil isso é exagerado. O
discurso é um, e as ações enquanto governo instituído são dicotômicas.
Analisando a política qual nos encontramos hoje, passamos por avanços sociais
engrandecedores, todavia, os projetos econômicos permanecem ao gosto das
elites tradicionais e aparentemente não têm anseio algum de mudar de foco tão
cedo”, diz.
Com o seu posicionamento, Letícia de Almeida não
nega a existência de uma oposição política no Brasil. Contudo, ela afirma
sentir a falta de opositores fortalecidos e embasados teoricamente em
pressupostos originais de criação de seus partidos. “As demandas teóricas que
rodam a engrenagem mestra do fazer social muito frequentemente são relembradas
somente a cada quatro anos (mesma regularidade com que a maior parte da população
avalia o governo), mas são deixadas de lado assim que um político assume uma
cadeira”, aponta.
Dívidas
Os últimos anos da ditadura militar deixaram uma
conta a pagar muito cara para o bolso dos brasileiros. A dívida externa e a
inflação na década de 1980 eram muito elevadas e, por muito pouco, o País não
enfrentou um verdadeiro colapso. A historiadora, porém, afirma que o Brasil
conseguiu diminuir a desigualdade entre as classes econômicas, melhorando a
qualidade de vida das mais baixas. “Hoje elas têm acesso a mecanismos de
inserção social relevantes para tal, como a facilidade ao acesso ao ensino
superior de qualidade. Esse aspecto é bem importante para analisarmos os
avanços da democracia, apesar da herança nefasta e emblemática deixada nos
pensamentos acerca da mesma”, comenta.
RESSALVA
Mesmo apontando diversas “heranças malditas” do
regime, a historiadora pondera ao afirmar que seria inadequado dizer que todos
os males do Brasil nasceram após os anos em que os militares estiveram no
poder. Conforme explica, a desigualdade, o cerceamento da participação
política, a corrupção e o clientelismo, por exemplo, sempre foram
características do País desde os primeiros anos da República. “E como bem
colocou o historiador Boris Fausto, não seria da noite para o dia que todos
esses problemas seriam resolvidos somente com o regresso da democracia. O fato
de que tenha havido um aparente acordo geral pela democracia por parte de quase
todos os atores políticos facilitou a continuidade de práticas contrárias a uma
verdadeira democracia. Deste modo, o fim do autoritarismo levou o País mais a
uma situação democrática do que a um regime democrático consolidado”.
PAPEL DO POVO
Letícia de Almeida declara que as instituições
mudam de tempos em tempos, seus lideres mudam com elas e suas ideologias não
são mais as mesmas, levando consigo conceitos e valores. Ela defende que essa
democracia em construção tem muito mais a ver com a atuação dos eleitores do
que com a dos elegidos, “pois é só a partir das exigências dessa maioria que a
consolidação do estado de direito poderá ser vista com total positividade”.
Por fim, a historiadora propõe uma reflexão: “Será
que não continuamos um povo inculto e despreparado para a política brasileira?
O que vemos não são cidadãos pouco articulados com a política e seus
compromissos e deveres para com a democracia em que vivem? Por 20 anos homens e
mulheres lutaram para que vivêssemos em um País democrático e com livre poder
de expressão, e é nisso que nos encontramos hoje. Se você estivesse nos anos de
chumbo, lutaria arriscando a própria vida pelo País que temos hoje?”, conclui.
Letícia de Almeida é formada em História pela
Universidade Estadual de São Paulo.
Publicada em
06/04/2014, SAO SEBASTIAO DO
PARAISO
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